domingo, 24 de maio de 2009

CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Pintura: Márcia Berenguer Cabral



As famosas carrancas do rio São Francisco constituem um enigma de nossa arte popular, na qual ocupam um lugar de especial destaque, tanto pela notável expressão artística como, principalmente, por sua dupla originalidade. As barcas do São Francisco são as únicas embarcações populares de povos ocidentais que apresentaram, de modo generalizado, figuras de proa, pelo menos nos últimos séculos. E estas constituem exemplo único no mundo de esculturas de proas zooantropomorfas. A originalidade é o mais importante atributo de uma obra de arte. Segundo Arnold Hausen, “para tener em absoluto calidad artística, uma obra de arte tiene que abrir lãs puertas a uma visión el mundo nueva e peculiar”.








A origem das carrancas do São Francisco deve ter sido a imitação da decoração de navios de alto-mar, vistos nas capitais das Províncias da Bahia e do país pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco em suas viagens à civilização. Devemos agradecer ao isolamento em que viviam os habitantes do médio São Francisco o fato de terem criado um tipo de figura de proa inédito em todo mundo: peças de olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e de animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira leonina.





Fecha-se assim o ciclo: a evolução das embarcações primitivas levou as figuras de proa, surgidas basicamente com conotações místicas, aos grandes navios, onde sua função era decorativa. E a influência dos grandes navios levou à imitação das suas figuras de proa, com intuito inicialmente decorativo, em pequenas embarcações de uma pequena sociedade rural primitiva. Seus membros, entretanto, deram frequentemente a essas figuras uma conotação mística. Em linhas gerais, a evolução esboçada para as figuras de proa é a própria evolução da arte.




Carrancas do famoso escultor Francisco Guarany



É Wilson Lins quem nos diz que nas noites de conversa, após o jantar, isolados em um barranco, contavam histórias de assombração e encantamento. “Religiosos e cheios de temores pelo desconhecido: se é remeiro, o seu remo quase sempre tem uma cruz ou símbolo de Salomão desenhados na pá.” E acrescenta que a crendice é muito forte, mas as assombrações locais não têm os requintes de perversidades das de outras regiões do país. “ Dos mitos aquáticos do vale, o Caboclo-d’Água e a Mãe-d’Água são os mais conhecidos”. Mas ainda há o Minhocão (ou Surubim-Rei). Estes três “enchem de leves pavores noturnos a gente da beira do rio...”.


Pintura: Jurandir Assis



Esta forte crendice permite melhor compreender por que o povo ribeirinho, inclusive alguns escultores de carrancas, atribuiu às figuras de proa a missão de espantar os duendes do rio. Daí o freqüente aspecto assustado e assustador das carrancas; de quem se apavorou com o duende que viu e, ao mesmo tempo, quer aterrorizá-lo com sua fisionomia retesa, de olhos esbugalhados.








Pode-se afirmar que as primeiras carrancas datam de 1875-1880, embora seu uso no médio São Francisco só tenha se generalizado neste século. É interessante notar que a Academia de Belas Artes da Bahia foi fundada em 1876, sendo possível que a repercussão deste fato, no São Francisco, tenha influído na decoração das barcas.








Francisco Guarany foi o escultor de carrancas que mais produziu. O vigor da escultura primitiva de Guarany, marcado pelo fantástico, resulta de sua autenticidade. Capingão, o cavalo encantado, Curupema, a índia que vira onça, Megatério, o animal pré-histórico e todas as demais carrancas estão em seu mundo interior. Outros grandes escultores foram Sebastião Branco, de Juazeiro, Moreira do Prado, de Januária e Afrânio, de Barreira.



Foto: Rafael Medeiros


As carrancas do São Francisco são uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas as individualidades de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época. Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do país e do mundo, cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam um verdadeiro impacto. Possivelmente até negativo, em alguns, mas esta é uma das características de uma verdadeira obra de arte: criar o impacto. Pode haver quem não aprecie as carrancas, mas jamais quem a elas fique indiferente.


Bibliografia: PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Funarte, 1979.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Espetáculo "Os choros de Villa-Lobos" - 21 a 24 de maio no Palácio das Artes

Corpos artísticos da Fundação Clóvis Salgado homenageiam Villa-Lobos em espetáculo no Palácio das Artes - Belo Horizonte/MG

A Cia de Dança Palácio das Artes, Orquestra Sinfônica e Coral Lírico de Minas Gerais são os três corpos artísticos mantidos pela Fundação Clóvis Salgado que juntos vão prestar homenagem ao cinquentenário de morte do célebre compositor brasileiro, Heitor Villa-Lobos. A apresentação especial será nos dias 21, 22, 23 e 24 de maio, no Grande Teatro do Palácio das Artes. Às 20h30 na quinta, sexta e sábado e às 19h no domingo. Direção geral e cenografia Ione Medeiros, coreografia Jomar Mesquita e regência de Charles Roussin.

Para fazer uma homenagem digna e sincera a um brasileiro nascido no Rio de Janeiro e que sozinho, aprendeu violão na adolescência, em meio às rodas de choro cariocas, os três corpos artísticos apresentarão o espetáculo Villa-Lobos: Choros. A dança será acompanhada por vozes e instrumentos de uma das séries mais importantes de Villa-Lobos, os Choros, escritos na década de 1920 a 1930. O compositor fez 16 choros para as mais variadas formações: piano ou guitarra solista, conjunto de câmara, voz e orquestra, coros, grande orquestra.

Villa-Lobos foi considerado um compositor único por unir músicas com sons naturais. O artista utilizava sons da mata, de eventos indígenas, africanos, cantigas, choros, sambas e outros gêneros muito utilizados no Brasil. A preocupação era sempre fundir suas obras com aspectos da música realizada no país.

A diretora do espetáculo Ione Medeiros fala da obra que escolheram para homenagear o cinquentenário do compositor Heitor Villa-Lobos. “Os Choros de Villa-Lobos nos remetem ao modernismo dos anos 20, movimento que se propunha a repensar a nossa cultura, resgatar nossas tradições, costumes e etnias, tendo em vista a construção de uma identidade brasileira. Dentro desta proposta, presente na literatura, nas artes plásticas, na música, nos manifestos de artistas e intelectuais, elaborava-se a seguinte questão: que cara tem o Brasil? Retomando esta perspectiva, queremos esboçar cenicamente um caleidoscópio telúrico feito de sons, cores e imagens, reavivando ícones e traços de nossa memória afetiva e comemoramos a exuberância criativa de nosso povo”. O espetáculo é dedicado ao grande músico Sebastião Viana.


Obras Pierrô, Índia Carajá e Cavalo Marinho, de Cândido Portinari: algumas das obras modernistas que inspiraram o espetáculo

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu!


VILLA-LOBOS
Por Fabio Gomes

Heitor Villa-Lobos, o maior compositor brasileiro, é autor de mais de mil músicas. São peças de vários gêneros, como concertos, sinfonias, suítes, quartetos de cordas, sonatas, bailados, arranjos para coro, peças para pequenos conjuntos e para grande orquestra.


Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro em 1887. Seu pai, Raul Villa-Lobos, violoncelista amador, reunia em casa um grupo de amigos que tocava música de câmara. Com a tia Zizinha, o jovem Heitor aprendeu a amar a obra de Johann Sebastian Bach. Ainda pequeno, incentivado pelo pai, Heitor iniciou-se no aprendizado de clarinete e violoncelo. Muitos anos depois, Villa-Lobos lembrava o papel paterno em sua formação musical:


- Meu pai, além de ser homem de aprimorada cultura geral e excepcionalmente inteligente, era um músico prático, técnico e perfeito. Com ele, sempre assistia a ensaios, concertos e óperas.


A mãe de Villa-Lobos, dona Noêmia, é que não gostava muito desse interesse pela música, pois queria que o filho fosse médico. Um pouco maior, ele passou a freqüentar as rodas de boemia onde se fazia o melhor choro da época.


Villa-Lobos aprendeu na escola da vida. Chegou a freqüentar o Instituto Nacional de Música, aos 20 anos. Mas não suportou a rigidez da disciplina e da falta de espírito criativo da escola. O INM não era o lugar de sua música, e sim da música-papel, como ele dizia:


- Há três espécies de compositores: os que escrevem música-papel, segundo regras ou modas; os que escrevem para ser originais e realizar algo que outros não fizeram e, finalmente, os que escrevem música porque não podem viver sem ela. Só a terceira categoria tem valor.


Com toda a certeza, Villa-Lobos pertence à terceira categoria. Sua grandeza está no fato de ter conseguido uma mistura perfeita do folclore brasileiro com a música de concerto européia, com a marca da sua forte personalidade. Ele não se limitou a recolher temas do povo e os harmonizar, como tantos já haviam feito. Nem se contentou em reproduzir modelos de além-mar, caso de outro grande compositor brasileiro, Carlos Gomes. Alguns autores como Alexandre Levy e Brasílio Itiberê já haviam utilizado temas populares em obras sinfônicas antes de Villa-Lobos. Mas estes temas quase sempre eram citações, nunca se alterando a fórmula que já vinha pronta da Europa. Villa partiu da riqueza musical do nosso povo para chegar a formas novas de composição na área da música de concerto, como os Choros, as Bachianas Brasileiras, as Serestas e as Cirandas.


Villa-Lobos viajou por praticamente todo o Brasil de 1905 a 1912. As condições para fazer tal aventura na época eram as mais precárias possíveis. Durante sua estada na Amazônia, por volta de 1910, sua mãe mandou rezar uma missa pela alma do filho que ela já julgava morto. Imaginem a surpresa de dona Noêmia, tempos depois, ao ver o filho ressuscitando no Rio de Janeiro...
Foto: Folha On-line

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Bruxo



Nasce um novo Hermeto!


30 de Abril de 2004 - Hermeto Paschoal encontrou vida nova em Curitiba, onde se radicou, deixando São Paulo, por conta do amor por sua mulher Aline, sua discípula na arte musical e que - vangloria-se - o faz transbordar, aos 67 anos, de alegria e esperança. O músico continua o criador de sempre. Em junho, apresenta nova sinfonia, executada ao ar livre, "junto com os passarinhos", pela Orquestra Sinfônica de Manaus. Na próxima segunda-feira, volta a Londres para tocar com a Big Bend no Cheltenham International Jazz Festival. Hermeto vive um momento especial de produção intelectual.
Hermeto é o futuro, os sons, os ritmos e a espontaneidade. Com sua música peculiar, natural, verdadeira, que nasce de suas raízes nordestinas e brasileiras, dos rios e passarinhos, ganha os corações e mentes de um público cada vez mais internacional.
O alagoano de Lagoa da Canoa, que nasceu agricultor, traz o erudito para o popular. Põe em prática a descoberta dos sons e ritmos que nos cercam, inclusive no dia a dia e as experiências que são desenvolvidas nas melhores academias de música contemporânea.

Um iluminado, como se os deuses lhe tivessem dado o poder de transitar entre a musicalidade da natureza e do homem. Criou uma nova linguagem, resultante destes dois mundos. A música tradicional, também, se transforma em suas composições e absorve a ansiedade daqueles que prevêem o futuro da música universal.
A alegria e disposição de Hermeto, que o fez trocar São Paulo por Curitiba, é a cantora lírica gaúcha Aline Paula Nilson, nome artístico de Aline Morena. "Hoje estou na minha terceira adolescência. Estava indo tocar nos Estados Unidos, quando apareceu Aline. Ela tem a cabeça igual a minha. Já compus diversas músicas de viola caipira, especialmente para ela", disse Hermeto Paschoal.
Os dois se conheceram em um show em Londrina, no Paraná, e nunca mais se separaram. Aline, gaúcha de Erechim, estudava a obra de Hermeto no Conservatório Musical de Curitiba. "Eu tinha ido ao encontro da música, na verdade encontrei mais do que a música: meu amor e a música juntos", disse Aline. Ela hoje participa dos shows no Brasil e no exterior.
Hermeto Paschoal, volta a tocar com a Big Bend - banda de 25 músicos formada apenas de saxofone e trompete - no dia 3 de maio, no "Cheltenham International Jazz Festival" da capital inglesa. Depois, a banda toca no "Norfolk and Norwich Festival 2004", em dois outros espetáculos. As maiores expectativas do músico são dois workshops na "Royal Academy of Music in London".

Na última vez que andou por lá, um jornal de Londres publicou matéria sobre o seu espetáculo com o seguinte título: "Hermeto Paschoal - o show da década". O músico pergunta: "Se fosse um jogo de tênis, com um brasileiro, estaria em todas as páginas dos jornais daqui. Agora, eu não vou procurar jornalistas para dizer o que estou fazendo", disse.

Hermeto começou sua carreira com 15 anos tocando sanfona, mas é nos anos 60, no grupo "Quarteto Novo", composto por Heraldo do Monte, Airton Moreira e Theo de Barros, e mais Geraldo Vandré, que ele consolida uma carreira, que hoje reúne uma obra com mais de 4 mil composições. Em 1973, lança seu primeiro disco - "Música Livre de Hermeto Paschoal". Nesta fase, que se estende por 10 anos, Hermeto sofre de dores terríveis no estômago e fígado, conseqüência de uma esquistossomose não diagnosticada.
Em 1977, grava seu segundo trabalho - "Slave Mass" - já nos Estados Unidos, uma vez que no Brasil não permitiam usar animais em estúdio, indispensável no disco. Em Los Angeles, pode gravar "Slave Mass" com dois porcos: um produzia o som do agudo e outro do grave.

Em Nova York, conhece o grande trompetista americano Miles Davis. Embora não fale inglês, Hermeto travou, mesmo assim, grandes embates teóricos com Davis, tendo Aírton Moreira como tradutor. "Davis, modéstia à parte, teria que aprender um pouco mais para chegar onde eu estava", disse Paschoal. Hoje, o Brasil é o País de maior musicalidade do mundo e "o Jazz dos Estados Unidos está pedindo penico", brinca o músico.

A seguir, o papo de Hermeto com o caderno "Fim de Semana":

Gazeta Mercantil - Você trouxe para a prática a música erudita contemporânea, que é a experiência com os sons e ritmos.

Hermeto Paschoal - Creio que sim. Quando aprendi teoria, a minha cabeça já estava pronta. Conheço a teoria, mas tudo que faço é intuitivo. Não premedito. Aprendi teoria musical depois dos 40 anos. Hoje, escrevo para qualquer tipo de sinfônica, como a peça de uma hora de música para a Orquestra Sinfônica do Amazônas. O primeiro movimento da sinfonia eu abri com os violinos - que são como passarinhos - uma vez que será tocado às 6 horas da manhã, em um espaço aberto, junto à natureza. A sinfonia será um diálogo com a natureza, com os passarinhos e outros animais.

Gazeta Mercantil - E a música brasileira, como anda?

Individualmente há grandes músicos. Uma meninada nova tocando bem. Tem mais quantidade e qualidade do que antigamente. Só que, o desejo de ficar rico, faz muitos deles tocar música brega e começam ganhando mais do que eu.

Gazeta Mercantil - Qual sua relação com o dinheiro?

Se eu pudesse matar o dinheiro me tornaria um criminoso. É o câncer do mundo.

Gazeta Mercantil - Como você administrou seus problemas de saúde?

Eu tinha esquistossomose (infeção no intestino e no fígado) e no Brasil não havia cura. Quando fui aos Estados Unidos em 1974, conheci Miles Davis, que me ajudou a curar a doença. Quando tocava na boate Stardust, em São Paulo, achavam que eu tinha problema no duodeno e a vesícula preguiçosa. Em Nova York, descobriram que, na verdade, era esquistossomose e lá tinha cura. Fiquei 10 anos com a doença. Às vezes, a dor era tão forte que precisava tomar morfina. A Ilsa, minha ex-esposa que está lá no céu, é que ia buscar a morfina, porque precisava de receita médica.

Gazeta Mercantil - A doença atrapalhou sua produção musical?

Às vezes, quando estava tocando órgão no Stardust tinha, que sair no meio do show para ir ao pronto-socorro. Foram dez anos em que produzi mais do que agora, em meio ao sofrimento da doença. A raiva pode ajudar quando você tem a convicção de que vai conseguir o que almeja.

Gazeta Mercantil - Nesta época, você fez o primeiro disco - "Música Livre de Hermeto Paschoal".

Sim, e o disco seguinte, "Slave Mass", foi gravado nos Estados Unidos, uma vez que era proibido levar animais aos estúdios daqui. Um fazendeiro do Texas levou seus suínos à gravadora. Airton Moreira ficou no estúdio com os animais, e eu na técnica para dizer qual dos porcos ele deveria mexer: "Airton mexe no grave. Agora, no agudo".

Gazeta Mercantil - E como foi a sua relação com o trompetista Miles Davis?

Profissional e muito espiritual. Eu notava que os músicos de lá não se relacionavam muito com ele, por inveja, por ser considerado o maior trompetista americano. O Aírton e a Flora Purim trabalhavam para Davis, fazendo arranjos. Davis pediu a Aírton para me levar à casa dele. Aírton ficou preocupado por eu não falar inglês. Eu disse, Aírton não se preocupe: ele (Davis) sabe que nossa conversa é espiritual, que é pau a pau no campo musical. Ele, modéstia à parte, teria que aprender um pouco mais para chegar onde eu estava. Quando cheguei na casa dele, me perguntou: você tem ouvido absoluto? É que quando toco trompete, toco em si bemol, e nas nossas escolas aqui, ensinam para ficar com a nota na cabeça para sempre lembrar. Eu disse que não precisava que tocasse a nota. Apenas indique a nota que deseja sem que eu precise ouvir nada. Ele olhou para o Aírton e disse: isso não pode. Aí eu dei o si bemol. E disse a ele: vê se sobe devagar a escada, se não você vai tocar desafinado lá em cima. Aí, me batizou de Albino Louco.

Gazeta Mercantil - E como vem essa sua intuição musical?

Teoria não é música. Música não se aprende, você se alfabetiza musicalmente. Se for para a escola sem tocar nenhum instrumento você é um robô. Qualquer cara sem dom musical pode tocar música por teoria. Em Porto Alegre, quase me mataram, por dizer que a sinfônica não tinha mais que dez músicos de verdade. Fiz milhares de composições, mas só tenho umas 100 músicas gravadas. "Bebê" (hoje um clássico da música universal que foi gravado em 1973), é bem tocado.
Gazeta Mercantil - E o chorinho?
Eu tocava muito chorinho. Agora o chorinho está como o bem-te-vi, muito judiado.
Gazeta Mercantil - Como você vê o apoio oficial à música ?
Deveria ser criado o Ministério da Música para cuidar de todos os aspectos que envolvem o trabalho musical. O Gil (Gilberto Gil, ministro da Cultura), pela inteligência, poderia fazer muita coisa, mas pelo que conheço do Gil ele vai mandar axé para o mundo inteiro. E não tá com nada o axé. O Gil é um talento, mas se fosse escolher alguém para ministro da Música, seria Arthur da Távola, valorizando a música regional. A Rede Globo, por exemplo, procurou nivelar o País musicalmente. É um desastre para o País. A Globo faz o que quer, uma música de consumo e cheia de rótulos. Graças a Deus, os jovens não estão aceitando.
Gazeta Mercantil - Você sente um pouco de abandono oficial em relação ao seu trabalho?

Não, não. Se não tiverem cuidado, eu vou abandonar muita coisa. Estou feliz. Eu não queria estar em um lugar cheio de coisas em volta. Agora, eu vejo gente querendo fazer um show em teatros do governo, onde cobram R$ 5 mil para um espetáculo. Isso é uma injustiça, pois estamos no País mais musical do mundo.

Gazeta Mercantil - Os Estados Unidos não são mais evoluídos na música?
Os Estados Unidos já tiveram sua fase boa, mas já era. O jazz está pedindo penico lá desde 70. Eles passaram a importar gente de outros lugares do mundo. Agora está acontecendo o seguinte: eu sou musicalmente, um cidadão do mundo. Eu estive lá. O cara que me copiar, eu reclamo. Eu sou um pintor da música. Não quero que ninguém mexa nos meus quadros. Quero que se influenciem com eles e mostrem que são criativos. Não fico feliz em ver alguém me imitando. Gosto que as pessoas sintam meu trabalho e tenham o seu.

Gazeta Mercantil - Qual a sua visão do Brasil, para aonde estamos indo?

Hoje está todo mundo duro e sumido, mas as pessoas estudam mais, a cultura melhorou. Fico admirado quando vejo uma maioria de jovens no auditório. Vou para o Japão tocar para 10 mil pessoas, a maioria jovens. É a música do Brasil, lá fora, fazendo a cabeça dos jovens. Quando fui tocar na Bélgica me disseram: olha, o pessoal aqui é muito frio e vai pouca gente. Eu disse: olha, estou com 250 volts e lá estavam mais de 1,2 mil pessoas. Em Berlim, compus - em duas semanas - uma sinfonia falando da tristeza do povo Alemão, que foi um sucesso de público. Quero inovar cada vez mais, para não ser visto como músico do passado. É como se as pessoas das gerações futuras dissessem: "Que pena que não vivi aquela época." Creio que por uma ou duas gerações há uma trabalho feito e eu posso viajar para o céu amanhã.

(Ivanir José Bortot e Guego Favetti - músico paranaense)




Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal





terça-feira, 5 de maio de 2009

No Princípio Era a Luz - II

Como Surgiu a Noite

O céu era azul, a claridade imóvel, desde que o mundo se fêz mundo. Mas contam que, certa vez, um índio encontrou um caroço de fruta. Sacudiu-o e sentiu qualquer coisa dentro. Levou-o ao ouvido e escutou curiosos ruídos. Eram vozes soturnas de aves, de sapos e de rãs, de grilos e de outros insetos. Cheio de curiosidade, quebrou-o...E a Noite surgiu, cobriu de trevas e de silêncio o mundo. E com a Noite, vieram as estórias que se contam ao pé-do-fogo.

Assim, da curiosidade dos homens nasceu a Noite. E a própria Noite, com a quietação, com as vozes veladas que se fazem mais audíveis, se transformou na maior alimentadora da curiosidade dos homens. Pois é ao crepitar do fogo doméstico, nas horas noturnas de descanso, que os índios perguntam a si mesmos e aos outros o "porquê" das coisas. Por quê, por exemplo. surgiu a Lua no meio da Noite, quando a estória conta que do caroço saiu apenas a Noite, sozinha, sem Lua nem nada?
--------------------

Afonso Schimidt, baseado em Ciro Dutra Ferreira, Ivo Sanguinetti, J.C. Pixão Côrtes e Luís Carlos Barbosa Lessa, do Centro de Tradições Gaúchas, em Lendas Brasileiras, Livraria Pluma, Porto Alegre.

Ilustrações: José Lanzellotti

segunda-feira, 4 de maio de 2009

No Princípio Era a Luz



Como Surgiu a Lua

No princípio a Lua vivia na terra e era conhecida pelo nome de Capéi. Era uma moça tão branca que parecia recortada nas águas da cachoeira. Passava os dias no fundo do bosque, acendendo as luzinhas dos vaga-lumes, ou à beira das lagoas espalhando reflexos.

Os homens a chamavam de Capéi e não sabiam muita coisa a seu respeito. Ela, no entanto, exercia influência sobre os reinos da Natureza. Dizia-se que regulava as marés, a germinação das sementes, o brilho de certas pedras de cor, o fluxo das mulheres, o nascimento das crianças e dos bichos. Os índios, para cortar o pau e fazer um arco, para plantar uma roça ou para armar um côvo na beira do rio, costumavam consultá-la. Os médicos-feiticeiros, para propinar uma erva ao doente, ou para predizer as coisas boas ou más que estava, para acontecer, íam interrogá-la no fundo do bosque.

Aquela vida apagada acabou por enfadar Capéi. E isso teve um fim quando ela se indispôs com certo feiticeiro das vizinhanças. Cheia de mágoa, resolveu abandonar a companhia dos homens, seus irmãos por parte de Deus, e subir para o céu, na esperança de uma vida melhor. E se bem pensou melhor fez.

Dali por diante dedicou-se a cortar cipós dos que pendiam das altas árvores. Depois, cochando-os, metendo um bastão de dois em dois palmos, como degraus, fabricou gigantesca escada que parecia não ter fim. Terminada essa obra, foi ao ôco de um pau e chamou a ave que lá passava os dias esperando a noite, para se entregar à caça dos insetos que eram seu alimento. Falou-lhe:

- Comadre Coruja, quer você me fazer um favor?

Capéi pediu-lhe que subisse até a porta do céu e lá ficasse segurando a extremidade da escada. A coruja, muito serviçal, prontificou-se a satisfazer o seu desejo. Assim, Capéi subiu para a vastidão azul, sem descansar nas grandes nuvens brosladas de ouro que encontrou no caminho.

Lá chegando, começou por indicar às filhas, que são as estrelas, seus lugares no firmamento. E desde então permanece lá em cima, a alumiar nas trevas da noite os passos de seus irmãos nos caminhos da terra.

----------------------

Afonso Schimidt, baseado em Ciro Dutra Ferreira, Ivo Sanguinetti, J.C. Pixão Côrtes e Luís Carlos Barbosa Lessa, do Centro de Tradições Gaúchas, em Lendas Brasileiras, Livraria Pluma, Porto Alegre.

Ilustrações: José Lanzellotti