quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Modernismo - Parte 1

Ismael Nery



“ Esperei até hoje que vós me descobrísseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora a minha história, e descreverei o meu físico para que disto tireis proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência.

Pertenço à esta espécie de homens que não constroem nem destroem, mas que explicam toda a construção e toda a destruição. Eu sou um predestinado, como foram também meus predecessores e como serão meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o germe que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam: não somos amados nem consolados. Se não fóssemos portadores do germe de que vos falei, há muito que a nossa raça teria acabado violentamente.

Quando tudo tiver atingido seu fim, aí começará nossa visível utilidade. O homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastarão mais para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir às necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo de equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida. Ah! Se nós nos pudéssemos conhecer, ou se, pelo menos, pudéssemos chegar a conhecer um outro homem!...A solidão do homem é o que mais o apavora na vida. Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas. Vivemos desconfiados – tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda espécie que vemos em todos os homens.

Inventamos o direito e a polícia; pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. O homem se esquece de que o que possui moralmente não é acessível aos ladrões, mas aumenta o seu desassossego com as suas posses físicas, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guardais ums mulher que não é vossa? Para que vos bateis por uma idéia que não sentis? Para que duas casas num só corpo? Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah, a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança-aumentamos a esperança-eu em Deus, e vós em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com autoridade que me conferem as rugas da minha testa, o meu olhar febril e as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causar nojo, mesmo que o nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico de vossas sensibilidades. Já reparaste, meus irmãos, que vivemos num mundo em que existem soldados, juízes e prostitutas? Onde se encarcera um homem pelo depoimento das testemunhas, ou se enforca um outro por insultar um líder? Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizeste, com a ciência que tendes, a psicologia de um chefe? Por que não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos?

A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renascem aqueles corpos gloriosos que encerraram as almas dos poetas, aqueles de que nós já trazemos o germe. Tudo foi feito no princípio – porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que manifesta a vocação transcendente do homem.
Todo homem recita um poema nas vésperas de sua morte. A humanidade recitará também o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas. – “Mirabili Dominus in opera ens”. – Ismael Nery, novembro de 1933.
O Modernismo no Brasil – Bardi, P.M.

Nenhum comentário:

Postar um comentário