quinta-feira, 30 de abril de 2009

O Congado

O negro escravo em Minas Gerais, por extensão no Brasil, teve quatro saídas: 1) social, através do congado, particularmente do reinado; 2) religiosa, através da irmandade Nossa Senhora do Rosário, que abrange os santos pretos (São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora Aparecida); 3) cultural, através da arte, principalmente música, dança, pintura, entalhe, escultura, ourivesaria e também do esporte; 4) política, através do quilombo ou aldeia de Xangô.

Congado é a designação genérica de uma grande família coreográfica, não apenas congos, estabelecida por negros escravos em louvor a Nossa Senhora do Rosário e santos pretos. È festa de devoção, um ritual sagrado, embora o profano a ela se associe com pujança.

Em geral, dá-se o nome de congada à exibição ritmo-plástica de uma guarda filiada à irmandade; congado é a instituição que une todos os membros da grande família, conforme já o definimos no parágrafo anterior.

O interesse pelo congado cresceu bastante, alargou-se no espaço e no tempo, ganhando devotos em quase todos os lugares do país. Em Minas Gerais ele tem força e brilho extraordinários. O dia da padroeira é 7 de outubro, mas as comemorações abrangem um ciclo – vão de agosto a outubro.

André João Antonil (pseudônimo do padre jesuíta João Antônio Andreoni), que esteve em Minas de 1705 a 1706, deu notícia dessas festas em sua obra Cultura e opulência do Brasil, publicada em 1711. No entanto, sabe-se de um registro de congos em Lisboa no ano de 1496, por conseguinte, antes da descoberta do Brasil

É que missionários franciscanos distribuíram estampas de Nossa Senhora do Rosário aos negros africanos, no último quartel do século XV, a fim de confundi-la, propositadamente, com Ifá, orixá da adivinhação, que ostentava ao pescoço uma guia feita de coquinhos de palmeira de igual nome, semelhante ao rosário de Maria. Ao desembarcarem em nosso país, muitos negros já conheciam a estampa da Santa.


Com respeito à origem da devoção, conhecem-se duas explicações, uma lendária, a outra científica. Segundo a primeira, um preto velho, alquebrado, à beira da praia, apoiando-se em um bastão, olhava saudoso o mar, rumo à África. Eis senão quando vê uma mulher que lhe acenava, com um pano azul, de um ilhéu próximo. Instintivamente, fixando a mulher, ergue o bastão, que se transformou em uma ponte. Atravessando-a, a mulher veio ter com ele e chorou, chorou...de ver o sofrimento do preto velho. Era Virgem Maria. As lágrimas rolavam e se cristalizavam, tornando-se sementes, lágrimas-de-nossa-senhora, que germinaram. Delas os devotos passaram a fazer seus rosários. Conforme a explicação científica, o congado é obra sincrética, uma mistura de fragmentos de crenças, predominantemente negras. A estas somaram-se elementos do catolicismo rústico ou doméstico e ritos ameríndios. O congado é crioulo, já se vê.



Tal como existe hoje em Minas Gerais, o congado é uma árvore de quatro raízes. Ou por outras palavras, resulta de quatro vertentes doadoras reunidas no Brasil por obra do sincretismo, da maneira a seguir:

1) Guardas ou Ternos– Saíram do candombe, reconhecido pelos irmãos do rosário como sendo o “pai de todos”, elo perdido entre África e Brasil. Significa dizer entre o culto jejê-nagô e a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Nenhuma guarda, seja qual for, terá menos de doze varsais (figurantes). Primeiro nasceu o congo, depois na seqüência moçambique, marujo, catopé, caboclinho, cavaleiro de São Jorge e vilão. São sete guardas ao todo, sem falar no ancestral mítico – o genitor, o candombe, que não sai à rua, não desfila, funciona entre quatro paredes, é um grupo fechado, espécie de maçonaria dos pretos. O candombe é o lado africano do congado, procede de crenças iorubas, principalmente do culto do Ifá. Como se disse, é a raiz africana – genuína, pura, verdadeira. Até recentemente, uma guarda de candombe só se instalava sob os auspícios de uma outra da mesma natureza, já consagrada, como se fosse um batismo ou certidão de nascimento.

2) Reinado – representa a fixação de lembranças da época faustosa da rainha Jinga (Njinga Mbandi de Angola), revivida com maior grandeza por Chico Rei, em Vila Rica. Parece-nos mais recente do que as guardas, mas se incorporou com ênfase e devoção e deu-lhe brilho extraordinário. A corte se constitui de rei e rainha congos, princesas, juízes e juízas, guarda-coroas, mordomos, aias e mucamas. O rei e a rainha congos desfilam sob enorme umbela azul, amarela ou vermelha, franjada de ouro, conduzida pelo caudatário, em roupa de gala. A função do reinado é unir as diferentes guardas em um mesmo sentimento de fé em Nossa Senhora do Rosário, e manter coesos os irmãos de cor.



3) Embaixadas – se traduzem por coragem e valentia, comunicam intenções dos respectivos reis e rainhas. Associaram-se aos marujos, por influência da tradição carvolíngia e onde sobressai a rezinga, que é uma representação entre vermelhos e azuis (mouros e cristãos) sempre que os embaixadores malogram em sua missão de paz. A função da embaixada é reviver o difícil papel de embaixador em tempo de guerra.



4) Irmandade de Nossa Senhora do Rosário – engloba também os santos pretos, fundada em 1714, só institucionalizada em 1728, conforme registro no Livro de Compromisso dos Irmãos do Rosário, na cidade do Serro, antigo arraial de Ivituruy, depois de Vila do Príncipe. Aos primeiros contatos, percebe-se que a Irmandade foi inspirada nas corporações de ofício da Idade Média. Seu papel ou função é dar estrutura legal à sociedade dos pretos, com estatutos e normas específicas de boa convivência com os filiados.


A prática do congado é transmitida de pai para filho, aprende-se de criança, por imitação, vendo e ouvindo cantar e dançar.

Condena-se com veemência o abastardamento atual dos modelos antigos do congado, sobretudo relacionados com a roupa peculiar de cada guarda. Assinale-se, todavia, que não se pretende uniformizar o congado nem opor-se a mudanças culturais desejáveis, apenas conservar a vestimenta sancionada pela tradição e consagrada.

De três maneiras pode-se individualizar uma guarda sem desnaturar-lhe as características nem comprometer sua autonomia: 1) através de um nome particular dado ao grupo; assim por exemplo, Guarda de Moçambique São Benedito de Ouro Preto. 2) pelo estandarte da Unidade, cujo motivo da pintura seja único ou privativo, embora a estampa da santa seja comum aos estandartes de todas as guardas, não importando procedência ou espécie; em Minas Gerais, o bandeireiro é chamado alferes. 3) pela cor ou combinação de cores do vestuário e dos paramentos.


As gungas atadas à altura dos tornozelos do moçambiqueiro representam os grilhões com que se prendiam os escravos. Então, elas são um símbolo de tortura da época da escravidão.

O lenço à cabeça é fixação de lembrança histórica do tempo em que foi empregado para amenizar o rigor do sol e tempestades de areia em Moçambique.

O bastão de comando, ligado a Oxóssi, teria vindo primeiro da nação ijexá, cultura sudanesa. Um símio o recebera e com ele dançou pela primeira vez. Três madeiras o compõem – cedro, com que se fez a cruz do martírio do mestre; braúna, da qual saíram os cravos; e acácia, a tabuleta mediante a qual se indicou a culpa de Jesus e dele os fariseus escarneceram.

As argolas presas aos lóbulos das orelhas são reminiscência de antigo costume das nações bantas, particularmente moçambique.

No último dia dos festejos do congado há o congraçamento dos irmãos do rosário, encerrado com um lauto almoço, elemento forte de coesão entre os membros da Irmandade.
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Bibliografia:

MARTINS, Saul – Panorama Folclórico; SESC/MG. Belo Horizonte, 2004.
Fotos: Tarcísio Luiz de Paula - Cortejo FAN (Festival de Arte Negra) 2007 - Belo Horizonte/MG

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